18 de outubro de 2011

Ritualidades

Reduzam a reforma, aumentem os impostos, tirem-me o médico de família, obriguem-me a mudar para outra freguesia, mas não me chateiem

Acordar, abrir a janela por onde o sol entra (quando brilha!) sem pedir licença, lavar a cara e pentear os cabelos desgrenhados, tomar o pequeno-almoço, voltar ao quarto, ligar o portátil, ler as notícias de primeira página, retocar as leituras mais próximas da minha sensibilidade - um ritual que não dispenso pela manhã, quer a noite tenha sido bem ou mal dormida. Para alguns, começar o dia desta maneira, sempre igual, trata-se de um vício, sobretudo porque incluo a internet no pacote dos hábitos matinais, e a internet vicia, dizem. O outro vício, da leitura, vem do tempo em que tinha um jornal diário à mão; agora, felizmente, tenho muitos jornais à distância de vários cliques.
A cadência dos pequenos gestos descansa-me o espírito, como quem ora a pedir graças para o dia inteiro; o meu dia, de há muitos anos a esta parte, começa tarde, tão tarde que, por norma, programo os meus afazeres para depois das doze horas – outro ritual, que se quebra por imperativos inadiáveis e só por isso.
Como é manhã, e cedo, depois da leitura, tenho tempo para dele fazer uso durante uma hora e vou, de seguida, aparar a relva do jardim, soltar os pombos (diariamente ansiosos pelo voo redondo com que me brindam do alto…), alimentar duas galinhas e um coelho que “responde” pelo nome “Guilherme”, dois canários e três periquitos, e depois subo ao primeiro andar para o banho retemperador.
Ontem a mãe fez uma sopa de feijão vermelho com batatas e couves do quintal, acrescentou um pouco de massa, e, para dar gosto, azeite e uma morcela. Está, garanto, uma delícia – não há melhores sopas do que estas, espessas e saborosas: duas conchas e ficamos a abarrotar, sem vontade de comer uma peça da fruta que está encavalitada num taça no centro da mesa. O almoço está feito, é só aquecer…
Como ando atarefado com o entendimento das várias crises, fico-me por aqui - é preferível dar continuidade aos meus rituais diários, a começar pela contemplação do voo dos meus pombos; às crises, agarro-as pelos bigodes, faço-as rodopiar e lanço-as para longe!
Reduzam a reforma, aumentem os impostos, tirem-me o médico de família, obriguem-me a mudar para outra freguesia, mas não me chateiem – façam tudo isso em “segredo”e depois logo se vê, se sou capaz, ou não, de sobreviver com a minha “profissão” de reformado a tempo inteiro - outro ritual que não dispenso!

1 comentário:

  1. Estes rituais,os teus , confesso serem bem mais saudáveis que muitos outros, sendo ou não vícios...
    Por isso acrescento um pouco de sal e pimenta...aos meus, com as tuas palavras, ...e como dizes e bem..."por favor, não me chateiem"....!!

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