25 de novembro de 2008

A importância de se chamar Dulcineia




Do meu sítio vejo os novos moinhos de vento implantados na Serra do Açor. A bem do progresso e da economia, a paisagem está, em definitivo, alterada; o horizonte, se o céu não estiver escondido pelas nuvens, ficou estranho para quem entende pouco ou nada de energias renovadas.
Para sempre, desaparecem os moinhos que moíam os grãos. Os actuais aerogeradores são gigantes com uma “cabeça” a piscar de vermelho na noite; de dia descobrem-se as “velas” num movimento constante e pouco apressado, com a finalidade de converter a energia eólica em energia eléctrica. Parte dela fará mover sofisticadas engrenagens com funções semelhantes às dos antigos moinhos dos moleiros, imagens ilustres da obra de Miguel de Cervantes, D. Quixote de la Mancha.
O autor narra, entre outras aventuras, a luta de D. Quixote contra os moinhos de vento que o próprio confunde com gigantes.
Se Miguel de Cervantes existisse neste tempo de modernidades, a ponto de viajarmos a outros planetas, certamente teria dado outro sentido à sua imortal obra e era bem capaz de inventar outro personagem, talvez com a “mesma triste figura” do seu cavaleiro andante, mas por outras causas…
Imagino a “minha serra” do Açor como mote para estória novelesca, desvendando segredos, como os que estão associados à aldeia histórica do Piódão.
É por aqui que me fecho num silêncio absurdo sobre a paisagem, quase “morta” de gentes e animais – nem um corvacho a sondar do alto a ração do dia, muito menos um “moleiro”, se é que os houve por lá noutros tempos.
Conduzo devagar, a seguir a uma curva, descubro a aldeia, faço uma pausa na viagem e contemplo a realidade de um sítio de total encantamento. Cá de cima não vislumbro qualquer tipo vida, como se o Piódão estivesse adormecido.
Continuo sem mais paragens até ao largo da Igreja. Depois, a pé, ando por ali numa espécie de solidão de bem-querer – desejo-a assim, que me faz bem à alma. Subo por uma rua minúscula e, na volta, o olhar perde-se no topo da serra e nos gigantes que “protegem” a aldeia…
Este momento único foi suficiente para reviver a estória do D. Quixote de la Mancha e do seu escudeiro Sancho Pança – duas personagens do imaginário fantástico de Cervantes.
Junto-lhe uma terceira, que nunca se “vê” na obra, mas sente-se a sua importância na vida apaixonada do cavaleiro: Dulcineia.
Estou, na vida, como D. Quixote de la Mancha em relação à figura que nunca viu – só dei conta disso num dia de Outono, no Piódão, aqui tão perto…

11 de novembro de 2008

Os caminhos das almas

À sorrelfa do Governo, que tardou em assumir os tempos maus, o dinheiro começou a faltar nas carteiras do pessoal, mas eu, como sujeito avisado, ponderado, ajuizado etc e tal, descobri uma maneira de ter uma nota – pelo menos uma! – de reserva. Partilho o óbvio, apesar de tudo, com algum incauto: como todas as carteiras têm um fundo, mesmo lá em baixo, no mais recôndito do espaço, por mais pequeno que seja, escondo aí o papel/moeda e faço por esquecer que existe!
Simples, como se vê.
Como o mês demora um tempão a passar, às vezes recorro ao esconderijo (quase) secreto e saco da nota para comprar meia dúzia de litros de gasolina, porque a nota, de tão curta no valor que lhe foi conferido pelo Banco de Portugal, não rende sequer meio depósito de combustível sem chumbo de 95 octanas. Paciência, quando não há mais nota, faz-se um “vale” ao patrão, que é um tipo bestial, compreensivo, e sempre tem notas lá por casa, digo eu porque anda com algumas no bolso da camisa, bem as vejo pela transparência do tecido “casca de ovo made in China”.
A necessidade de recorrer a este método não é aconselhável, sobretudo se o patrão tiver o hábito (o meu tem!) de guardar os papelinhos dos “vales” de modo a fazermos contas lá para dia dez ou quinze do mês seguinte. Não interessa agora chamar um nome feio ao senhor, mas é pena que tenha memória de elefante…
Importa poupar, não sei como, mas há que poupar nos gastos e guardar sempre uma nota, mesmo de baixo valor, no tal esconderijo das nossas carteiras. Enquanto andarmos por cá, no mundo dos vivos, terá de ser assim; depois de termos entregue a alma ao Criador, não é necessário nenhum truque para economizar o que quer que seja.
A propósito, diz-se por cá que os mortos, depois de confirmados debaixo de uns palmos de terra, cobertos por um balde de cal e ao som de meia dúzia de badaladas do sino da Igreja, só “precisam” de umas missas e algumas rezas para encomendar as suas almas a Deus. Confesso que me confunde a ideia de ser “encomendado” depois de morto, mas quando lá chegar saberei (?) se algum dos vivos se deu ao trabalho de rezar pela minha alma e acender umas velinhas para me alumiar o caminho.
Deve ser a pensar nos caminhos esconsos por onde andam as almas de noite que alguns cemitérios têm iluminação, de outro modo não se percebem os motivos que levam os “donos” dos cemitérios a gastar electricidade – digo eu, que não sou nada entendido em Sistemas de Posicionamentos Globais, popularmente conhecidos por GPS, nem em candeeiros, mas sei que da “minha” cidade ao sítio onde moro, não há que enganar: noventa curvas é quantas tenho de fazer e desfazer nas calmas, sem iluminação pública, por entre pinheiros e eucaliptos, alguns com sombras de gente quando há luar, se pensar nas “almas que ainda andam por aí” por falta de uma luzinha que seja para chegarem ao destino pelo melhor caminho, o que não acontece, felizmente para as ditas, no cemitério de Vila Pouca da Beira…