Foi necessário deslocar-me às instalações da Santa Casa da Misericórdia de Arganil, o que nunca fizera antes, apesar das inúmeras viagens que, em tempos, me proporcionaram conhecimento profundo da Vila e das pessoas – de algumas pessoas – com quem partilhei ensinamentos e experiências inesquecíveis. O tempo de espera para uma conversa com figura proeminente da Medicina foi suficiente para um pequeno passeio pelas instalações da Instituição; vi obra recente, alterações arquitectónicas que redimensionaram espaços, e até o busto do Dr. Fernando Vale mudou de sítio, embora se mantenha visível em local digno. Não fui adiante, porque a memória "disse" para ficar e olhar – olhei!
O tempo de meditação foi curto, mas a imagem daquela figura que conheci de perto e me honrou com amizade fraterna, acompanhou-me pelo resto da tarde. À esquerda de quem entra no Hospital, continua exposto o consultório de outro ilustre cidadão, de seu nome Adolfo Rocha, médico dentista de outros tempos, de quem a História pouco diz, mas eleva às alturas do sublime quando acrescenta o pseudónimo de Miguel Torga. Outra pausa na viagem e deixei-me ficar, mirando com minúcia os objectos.
"Desfiz-me do consultório. Mil circunstâncias adversas conjugaram-se nesse sentido. E adeus meu velho reduto onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta. Ofereci o material cirúrgico ao Hospital da Misericórdia (de Arganil) onde durante anos operei, e o mobiliário à Junta de Freguesia de S. Martinho" – escreveu Torga em Junho de 1992
Fernando Vale e Miguel Torga - ali, quase de "braço dado"…
Do que conheço da obra do Torga, partilho com a "minha verdade" a sua opinião sobre o Homem, que diz ser "…por desgraça, uma solidão: nascemos sós, vivemos sós e morremos sós"! Revejo-me nesta frase e numa outra onde retrata o beirão (que também sou, de peito aberto aos ventos que sopram da serra do Açor), como teimoso e cabeçudo!
De Fernando Vale recordo anos, (apesar de poucos - é sempre pouco o tempo que os Mestres nos concedem!), e momentos passados na sua casa de Coja, onde eu (e os outros…), de pé e à ordem, atentamente, aprendíamos os segredos da palavra perdida, e desenvolvíamos o espírito de modo a construirmos, cada um por si, o templo interior da tolerância e da fraternidade. Por vezes, na sala, a meio da conversa, se havia incertezas, o Mestre, delicadamente, pedia: "…por favor, naquela prateleira, não se importa de me trazer o livro (…)" – e a dúvida morria naquele instante!
Por ali, tudo parecia justo e perfeito, cada coisa no seu lugar, cada lugar para cada coisa, que tanto podia ser um livro, jornais, documentos - um autêntico acervo de "sabedoria com alma".Imaginei-me, vezes sem conta, sentadado na cadeira usada por Miguel Torga, Moura Pinto, Edmundo Pedro, Soares…
Lá fora, no pátio interior, a videira que Torga plantou em 1954, continuava viçosa…
O tempo de espera, nas instalações da Santa Casa da Misericórdia, chegara ao fim. Nunca como naquele dia, que me lembre, o atraso de um médico foi tão "abençoado"!
De regresso a casa, remexi nas coisas que guardo com estima, folheei e li opúsculos de Carlos Teixeira e Luís Vale, "perdi-me" com os desenhos do Alberto Péssimo e deliciei-me com a poesia de António Arnault. Como dizia o Mestre, citando Dostoievski, só a beleza salvará o mundo…
Depois, tive o atrevimento de me abalançar a esta croniqueta.